Da identidade e acções dos terroristas à absolvição final, a obra ‘O Terrorismo e as FP 25 anos depois’ percorre quase toda a saga da organização terrorista que operou na democracia portuguesa. O seu autor não hesita em apontar o dedo: “No processo de pedofilia da Casa Pia há nomes que não apareceram porque foram negociados nas amnistias das FP”, diz.
A acusação abrange políticos, governantes e Ministério Público. É aquilo que apelida de “acordos políticos e judiciários feitos com criminosos terroristas”. Explica a privatização do Terrorismo e afirma que em Portugal ninguém perdeu dinheiro com as FP. Nem os bancos. Fala das centenas de armas que nunca foram recuperadas, mas diz que não tem medo. Afirma que passados estes anos ficou um respeito mútuo entre os operacionais da PJ e os das FP. Cada um no seu lugar... Os outros, que se escudaram discretamente no legalismo, diz, não avançam porque esses é que têm medo.
José Barra da Costa, foi o investigador da Judiciária que liderou a infiltração e caça às FP 25 de Abril. Ele e mais três colegas fizeram-se passar por padre, jornalista, fotógrafo e até por gente dos serviços secretos. Três dos oito anos da investigação foram vividos na clandestinidade. Igual à dos terroristas. “Chegámos a viver no mesmo prédio”.
Hoje, à distancia dos anos, o antigo inspector-chefe da Judiciária, regista a visão histórica dos factos, mas não resiste a imprimir emoções e revoltas. Reconhece-o, por exemplo, quando agradece a colaboração para este livro ao operacional que foi acusado de ter morto amigos seus. Ao longo de ‘O Terrorismo e as FP 25 anos depois’ e da entrevista que nos concedeu há um alerta permanente: “Afirmo neste livro que o descontentamento pode potenciar o aparecimento de novos grupos terroristas. E há um descontentamento social e etnico no horizonte português”. Do fenómeno do terrorismo à luta armada Barra da Costa esmiuça tudo. Quadros, acções, enquadramentos jurídicos e operações. Tudo contado em pormenor, mas sempre polvilhado de uma emoção que não esconde.
Correio da Manhã – O que é que o motivou a escrever este livro?
Barra da Costa – A Injustiça. A luta armada é apenas uma via. As dezenas de mortos e não sei quantos feridos. E para que alguns académicos relembrem que os doutoramentos só devem ser feitos com base na própria obra.
– Refere relações conspícuas e acordos safardanas. Quais?
– Não se pense que as coisas estão esquecidas. Houve acordos políticos e judiciários feitos com criminosos terroristas.
– Está a dizer que o Estado fez acordos com terroristas?
– Sim. Mas as provas só serviram para incriminar os arrependidos. Aos outros terroristas foi proporcionado escapar por entre as malhas da lei... Esbateram provas, disseminaram culpas e até conseguiram baralhar processos. Mário Soares rematou tudo com um indulto e o Ministério Público com outro.
– O Ministério Público?
– Os senhores procuradores decidiram não recorrer esquecendo os crimes de sangue e a associação criminosa. É um indulto mascarado. Ele há indultos, esquecimentos e amnistias.
Isto para mim é bem mas violento do que a morte de todas as pessoas envolvidas. É Violência Estrutural.
– Fala nos troca-tintas do passado que hoje se passeiam pelos salões. Quais?
– Da Assembleia da República por exemplo. Os que saíram da LUAR e não tiveram coragem de se assumir FP. Os que passaram pelos GDUP, UDP, PCP, MES e que hoje são do PSD e do PS.
– Dispara para quase todos os partidos. Pessoas é que não aponta...
– Vá aos livros e jornais, faça a comparação e veja quem são alguns.
– Houve traições?
– Entre os operacionais. No final já havia quem assaltasse por conta própria.
– Privatizaram o Terrorismo?
– Alguns reconhecem hoje que só o fim das FP-25 acabou com os oportunismos. Poucos se assumiram operacionais.
– E influências internacionais?
– Isso lê-se nas actas apreendidas às FP. Havia quem estivesse a favor das mortes e quem estivesse contra. O Otelo disse à saída do julgamento que o José Barradas era apenas um desgraçado pescador e não percebia nada de política. Verdade. Era tão desgraçado que nem foi convidado pela CIA dois anos antes para fazer o 25 de Abril...
– Houve mão da CIA nas FP?
– Americanos e franceses quiseram provocar o afundamento deste País.
– Mas isso é dizer que a direita controlou a extrema-esquerda?
– Financiou-a que é pior. Financiaram quem criou o caos para demonstrar que a democracia e o pós-25 de Abril eram uma farsa.
– Os extremos tocaram-se?
– São as partes mais facilmente infiltraveis nessas organizações.
– Quem é que está à frente dessas organizações?
– Invariavelmente intelectuais. Alguns mudam de partido de tempos a tempos. No processo de pedofilia da Casa Pia há nomes de pessoas que ainda não apareceram e ninguém percebe porquê. Foram negociados nas amnistias das FP.
– Dê-me um só exemplo?
No final dos anos 80 algumas pessoas da política reuniram com elementos das FP-25 para estudarem as amnistias. Nessa reunião foram apresentadas fotografias sobre pedofilia para pressionar o Governo a dar indultos e amnistias. Essas fotografias hoje não aparecem, mas na altura estavam em cima da mesa como moeda de troca. O Terrorismo é uma espécie de Pedofilia da Democracia.
– Lembra-se de algum nome?
– Lembro. Mas não digo. Nem digo o dos oportunistas que ainda hoje vivem à custa disso. Limito-me a vê-los. Eles sabem que eu sei. Mas há mais pessoas que sabem.
– Essa parece uma frase do Octávio Machado.
– Este livro é sobre factos. No processo Casa Pia há dezenas de elementos e de apontamentos que nunca vieram a público. Mas mesmo não estando nos autos, existem.
– E nunca foram denunciados porquê?
– A arraia miúda mesmo que os chefes falem nunca acredita. Os que andaram aos tiros, a fugir e a esconder-se faziam aquilo em que acreditavam. Os apoiantes discretos vivem hoje como se nunca tivessem feito parte da Organização.
– É a tese das instituições infiltradas?
– Não é tese. Os assaltos eram indemnizados por companhias de seguros que por sua vez foram reembolsadas por seguradoras estrangeiras. Em Portugal ninguém perdeu dinheiro com as FP. O assalto dos 108 mil contos aconteceu porque havia informação interna. O dinheiro foi reembolsado ao banco pela seguradora.
– Qual o destino dos 108 mil contos?
– Dívidas e financiamentos. Firmas de Import/Export, carros e empresas. E advogados revolucionários que cobravam às FP nove mil contos para a defesa. E muita gente recuada em Moçambique e na Argélia. E o financiamento de jornais.
– Quais jornais?
– Toda a gente sabe. Dois semanários e uma estação de rádio, hoje muito conhecida.
– Nome?
– Todos sabemos...
– Eu não!
Paciência.
– Também fala de infiltrados das FP na polícia?
– Há pessoas que antes de serem polícias, já eram conhecidos elementos de organizações terroristas.
– Foi portanto com o que esse conceito implica que escolheu a sua equipa para investigar as FP? Que relações mantém hoje com essas pessoas que recrutou?
– As mesmas que têm os operacionais depois da guerra. Vêem-se uma vez por ano. Sabiam antecipadamente que iriamos ser tratados como carne para cão. Seleccionei-os na escola da PJ. Três pessoas que se infiltraram em vários quadrantes com resultados excelentes. Ninguém os conhecia.
– É verdade que formalmente os quatro nunca operaram?
– Pode ser. O trabalho era canalizado para a área das informações, mas antes, por conta própria, cruzávamos tudo com as investigações no terreno. O ministro da Justiça (Rui Machete) que não cheguei a conhecer, não queria (”nem podia”...) saber de nada, apenas queria que se acabasse com as FP-25.
– Viveram na clandestinidade?
– Os políticos queriam desesperadamente mostrar ao povo que a coisa já estava controlada. Para mim, estava apenas a servir o meu País. Passei por padre, arquitecto, jornalista, fotógrafo e até por homem da Secreta. Três anos sem crachá. Literalmente ‘undercover’ com BI, cartas de condução, arrendamentos, tudo falso. Tudo como o inimigo. E por vezes a viver no mesmo prédio que o inimigo.
– No mesmo prédio?
– Pois. Há escutas que ainda hoje lá estão. Não houve condições para desmontar tudo. Há segredos que ainda hoje são inenarráveis.
– Por onde é que começou?
– O primeiro objectivo foi apanhar-lhes um erro.
– Qual foi?
– Abandonarem os primeiros detidos. Sem apoio, sem visitas, sem família, receberam colo precisamente de quem fugiam. Nós.
– Mas se estavam presos?
– Melhorámos-lhes as condições e transferimo-los para prisões perto das famílias. Aos poucos ganhamos-lhes a confiança.
– As armas das FP (nunca recuperadas) continuam em “boas mãos”?
– Continuam, digamos, “guardadas”. Há ideias eternas.
– Sabe do paradeiro de algumas?
– Sabem os ex-operacionais das FP.
– Quantas andarão ainda à solta?
– Centenas, à vontade.
– Os ex-FP são hoje cidadãos recuperados para a sociedade?
– A maioria deles sim. Para a Democracia não sei.
– Está-me a dizer que alguns podem regressar à actividade?
– Claro. O descontentamento social e étnico está no horizonte.
– Nunca teve medo?
– Continuo a andar desarmado e sem segurança.
'AS FERIDAS DEIXAM CICATRIZES'
– Na sua actividade televisiva trabalha com Luís Gobern, ex-operacional das FP-25 Abril. É fácil conviver com quem foi acusado de ser assassino dos seus amigos?
– Pode até parecer promíscuo, mas é já uma relação de amizade. Não esqueci. As feridas deixam cicatrizes, mas doem-me mais as traições do Estado. Os oportunistas deste processo que vivem em Bruxelas cheios de segurança, nos Ministérios, na AR... Isso para mim é bem mais violento do que a morte de todas as pessoas envolvidas. É a Violência Estrutural. Nas estradas morrem duas mil pessoas por ano e doi menos ao País. Estas coisas só se percebem quando a gente as vive. É possível conviver com os assassinos dos nossos amigos, considerando as questões do tempo e as circunstâncias. Eu também fiz coisas que não devia e assumo-as. Porquê? Porque tinha a profissão mais linda do mundo. E isso valia tudo. Inclusive as traições que me foram feitas, na própria polícia para quem eu trabalhava.
– É isso que o faz temer mais a inveja de alguns polícias do que a fúria dos guerrilheiros, como escreveu?
– Os polícias são seres humanos. Mas quem tem invejas tem poucos ideais. Do outro lado também havia seres humanos mas tinham ideais. A polícia não. Se não, já tinham lutado para não serem a bengala do Ministério Público.
PERFIL
José Barra da Costa tem 53 anos.
Mestre em Relações Interculturais, pós-graduado em Ciencias Criminais e em Estudos Psico-Criminais, é antropólogo de formação, mas assume-se, “antes de mais polícia”. O País conhece-o da televisão, mas a carreira de Barra da Costa começou na Polícia Judiciária (PJ) há mais de trintra anos, no Porto. A investigação que fez às FP 25 Abril é, no seu dizer, “apenas mais uma”, mas as consequencias da caça aos primeiros terroristas da democracia deixaram-lhe marcas indeléveis. Os quatro anos que passou depois no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras foram vistos por muitos como uma promoção. Para Barra da Costa foi apenas “uma manobra para afastar quem é incómodo”. O Inspector-chefe da PJ ainda regressou à casa-mãe, mas retirou-se pouco depois. Hoje é professor universitário e formador de investigação criminal. Ao ritmo de um por ano, vem publicando vários trabalhos na área das ciências criminais.
O último é ‘O Terrorismo e as FP 25 anos depois’.
EQUIPAMENTO MILITAR
Em todas as acções, os homens das FP usavam luvas, meias de nylon e gorros. Empunhavam diverso material de guerra que ia das pistolas metralhadoras de calibre 9 mm, às pistolas Walther de 9 e 7,65 mm. Granadas defensivas e ofensivas fizeram também parte do arsenal utilizado. Parte dele roubado às Forças Armadas Portuguesas, outro, comprado em lugares tão distantes como a Argélia ou a Líbia, onde também alguns receberam formação militar. Nas fileiras das FP-25 Abril militaram ex- operacionais das PRP-BR e das operações especiais portuguesas. O Ultramar português tinha acabado há pouco. Comandos, fuzileiros e outros foram recrutados com sucesso pelas FP-25 de Abril. Há especialistas que afirmam que as últimas acções foram já executadas por grupos isolados da Organização, para proveito próprio.
TRÊS DEZENAS E MEIA DE ASSALTOS
O assalto à tesouraria das Finanças de Sintra, em 27 de Fevereiro de 1980, inaugurou o período de terror das FP-25 Abril. Ao longo de quase 10 anos, provocaram uma vintena de mortes e um número nunca totalmente apurado de feridos.
Para conseguir meio milhão de contos as FP 25 de Abril levaram a cabo três dezenas e meia de assaltos. Acções de “recuperação” ou de “recolhas de fundos”, cujos proventos se destinavam a subsidiar a organização. Há quem defenda que uma percentagem das maquias “recolhidas” reverteu a favor dos operacionais.
O restante, sabe-se, foi utilizado para sustentar elementos na clandestinidade, salários, abonos, viagens, treino, compra de armas, carros e arrendamento de imóveis.
Quase todas as acções foram reivindicadas pela organização através de comunicados e cassetes enviadas aos órgãos de comunicação da época.